20 de mar. de 2008

Seu Zé e a Vida

Ele era um cara comum.

Tão comum que se chamava José da Silva.

Mais comum que o nome, só apelido pelo qual era conhecido: seu Zé.

Seu Zé era um sujeito magro, de estatura alta e de pele morena. No meio do cabelo escuro, se encontravam alguns poucos fios brancos. Tinha 69 anos, trinta e oito deles dedicados ao trabalho em uma indústria metalúrgica.

Pernambucano, semi-analfabeto, veio do Norte ainda moço em busca de um lugar ao sol na cidade grande. Em São Paulo, arrumou emprego, mulher, filhos, família. Comprou uma casa, um carro, um cachorro. Nada muito diferente de tantos outros Zés espalhados por ai.

Trabalhava muito, se divertia pouco. Nas poucas vezes que viajava, ia para Pirassununga, no interior de São Paulo, onde moravam os pais e irmãos da esposa. Uma família comum, vida comum, um homem comum.

Sua vida começou a se findar quando se aposentou. Durante os primeiros meses ficava inquieto. Acordava todos os dias as quatro e meia da manhã. Horário que costumava acordar para ir ao trabalho. Chegou a bater na porta da sua antiga empresa pedindo para voltar a trabalhar, nem que fosse meio período, nem que recebesse apenas uma ajuda de custo. Mas o tempo passou.

Resolveu então abrir um negócio. Abriu um boteco, na rua de sua casa. Mas seu Zé não tinha paciência com os bêbados, nem com as as vendas fiadas. Fechou depois de um ano. Resolveu abrir uma doceria, depois um bazar. Nenhum deu certo. Por dentro se sentia vivo, disposto, pronto para continuar produzindo. Mas já não encontrava espaço. O tempo passou e depois de alguns anos, resignou-se. Aceitou que não tinha mais o que fazer. Perdeu a disposição que tinha.

Os filhos casaram e partiram de casa. O tempo também lhe levou a esposa. Na velha casa amarela, restava apenas a companhia do velho cachorro. Cego, manco, mas leal.

Passou a dividir o tempo entre jogos de dama na praça do bairro e as conversas jogadas fora no boteco da esquina. Sem sonhos, sem planos. Apenas deixando o tempo passar, coisa que as vezes custava acontecer.

No último natal, os filho trouxeram os netos. Comeu panetone e ganhou presentes. A casa estava cheia, mas a vida continuava vazia.

Até que, em uma certa manhã, Seu Zé se sentiu mais indisposto do que o normal. Uma dor lhe queimava o peito. Dor que no início era aguda e intensa, mas que logo foi se tornando reconfortante. Percebeu que havia chegado à hora.

Abriu um sorriso e caiu no chão.

Durante o velório, nos cantos do pequeno salão, o que se falava era que seu Zé era um sujeito comum, que sempre quis algo a mais da vida. Mas morreu sem saber o que.

21 de jan. de 2008

A luz da Luz

Série - Lugares de São Paulo

Década de 30. É hora do almoço em São Paulo. Com passos apressados, os garçons atravessam um amplo salão. Apesar do intenso movimento, o clima é de calma. Nas diversas mesas espalhadas pelo lugar, empresários, intelectuais, políticos, diplomatas e até reis, que vinham apreciar a famosa comida do estabelecimento, conversam animadamente.
Essa era a rotina do charmoso restaurante Vagliengo, que por muitos anos ocupou o andar superior da estação de trem que exalava glamour pelos seus tijolos: A São Paulo Railway Station ou como era mais conhecida: a Estação da Luz.
Localizada em meio ao Jardim da Luz, a estação era um imponente prédio de beleza singular, tido como o cartão de visita da cidade de São Paulo. Construída pela companhia São Paulo Railway, então dona da estrada de ferro que ligava o interior paulista ao porto de Santos, atravessando os principais bairros de São Paulo, a estação foi um dos primeiros benefícios que a cidade grande recebeu por conta dos lucros vindos dos cafezais.

Decadência

De contornos neoclássicos, inspirados em obras como o Big Ben e a abadia de Westminster, a estação era tida como o cartão de visitas da cidade, já que todas as personalidades ilustres que tinham a capital como destino eram obrigadas a desembarcarem lá. O número de passageiros e cargas que passavam pela Luz diariamente, faziam com que suas plataformas vivessem cheias e movimentadas.
Mas o charme e o glamour da estação estavam, como inúmeros outros itens, ligados à prosperidade da ferrovia inglesa. A decadência no ciclo cafeeiro e o fim do contrato de concessão com os ingleses fizeram com que a estação fosse gradativamente perdendo seu brilho.
Em 1946, um incêndio, até hoje não esclarecido, destruiu o prédio, queimando todos os documentos que registravam as contas da estrada na época do domínio inglês.
Os anos passaram e na década de 70, prostitutas e mendigos tornaram-se os clientes preferenciais do antigo restaurante Vagliengo, que agora funcionava como lanchonete, até ser fechado definitivamente em 1986.
Sem a mesma qualidade do serviço e sem conservação, os trens de passageiros passaram a ser alvos de várias reclamações por parte dos usuários. Até que em 1996 eles saíram de atividade.
Desde então as marca da estação, que atualmente está em poder da CPTM, eram as infiltrações nas paredes e corrosões nas estruturas de metal. Só em 2004, por conta das comemorações dos 450 anos de São Paulo, a Estação da Luz teve um pouco de seu brilho devolvido.

Outros tempos

O prédio foi entregue à população totalmente restaurado. Um intenso trabalho recuperou a arquitetura e os traços imponentes do início do século e suas plataformas foram readaptadas para os atuais trens metropolitanos, que voltaram a funcionar na estação.
Para trazer de volta um pouco do status de ponto de encontro que a estação mantinha, principalmente com o seu famoso restaurantes Vagliengo, em 2006 foi inaugurado o belíssimo Museu da Língua Portuguesa.
Mas nem o Museu, nem a nova iluminação, que durante a noite ilumina sua fachada alaranjada fazendo-a se destacar na paisagem da capital, foram suficientes para devolver a estação o espírito imponente do passado.
A cidade cresceu e nos dias de hoje o movimento na Luz é intenso, marcado por passos apressados e rostos indiferentes. Lotada de pessoas que se trombam pelas plataformas. Ocupadas, presas em seus mundos particulares, se debatendo para conseguir, de forma desorganizada, adentrar os vagões ao mesmo tempo em que outros tentam sair.
Já não há mais tempo para se olhar a beleza da estação ou de entender a história guardada entre seus tijolos. Daquele prédio imponente, considerado marco do desenvolvimento e cartão de visita de São Paulo, restou apenas uma estação de trem.

Trecho do meu livro-reportagem Em Companhia de uma Inglesa – Vidas que a ferrovia construiu

14 de jan. de 2008

VOLTEI !!!

Os ultimos meses foram intensos. Muitas mudanças, novas experiências.
Isso foi muito bom, mas por outro lado acabou me afastando do blog. Enfim, esse recado é só para avisar que agora que as coisas estão se acalmando, eu voltarei a postar com mais frequencia nessse querido espaço.
A todos um ótimo 2008!!

Até breve!

29 de set. de 2007

Fantasmas de um soldado


_Você tem medo de morrer?
_Tenho sim senhora
_ E como é que você vai ser policial?
_ Eu não quero morrer senhora, eu quero ser policial.

Fazia mais de 14 anos que aquele diálogo havia acontecido, mas ainda estava vivo na lembrança de Cleverson. Era a última etapa para ele ser aprovado no concurso público da Policia Militar de São Paulo. A entrevista psicológica era a etapa mais temida entre os participantes da seleção. “A doutora entra na sua mente”, diziam alguns de seus amigos que haviam enfrentado o teste.
Cleverson foi aprovado. Quando saiu da pequena sala estava preste a realizar um sonho antigo, que vinha desde os tempos de criança, quando via o policial como uma espécie de super herói. “O cara que salvava as pessoas que estavam em apuros”, como ele gosta de lembrar. Claro que, na medida que crescia essa imagem heróica ia sumindo de sua mente, mas à vontade de seguir esta carreira continuou intacta dentro do peito.
17 de Agosto de 1993. O céu estava nublado naquela manhã e um vento gelado aumentava a sensação de frio. Era seu primeiro dia no quartel e ele precisava se esforçar para esconder o nervosismo. A bota de couro lhe apertava os dedos, o corpo parecia se esforçar para se adequar ao peso da farda cinza. Estava apreensivo. Sentia uma certa insegurança quanto à carreira que acabava de iniciar. Mas estava feliz.

Sonhos perdidos

Mais de 14 anos depois daquele dia, o nervosismo, a apreensão, a ansiedade e principalmente a felicidade davam lugar para sentimentos bem diferentes. Agora ele tinha o semblante fechado, de raros sorrisos. Ao longo dos anos, o corpo franzino adquiriu músculos bem torneados e uma barba rala lhe cobria o rosto. “Agente tem que ter cara de mau, se não malandro não respeita”, explica.
Os olhos fundos, eram reflexo das noites mal dormidas, um pouco por conta da sua nova rotina. A noite faz rondas noturnas e durante o dia faz bico como segurança de um açougue. “Se não for assim a gente passa fome”. E também devido às lembranças que atormentavam suas noites.
Bem visível no ombro esquerdo, uma grande cicatriz. Recordação do primeiro tiro que levou. “Foi logo no meu primeiro ano de policial. Já haviam me avisado que na ronda noturna o bicho pega. Mas eu gostava da adrenalina. A gente foi atender uma briga de bar dentro de uma favela. Já estávamos indo embora e ouvimos uns tiros vindo de outra rua. Era uma briga de traficantes, que disputavam o poder de uma boca de fumo.
Eu nuca havia dado um tiro, só no treinamento, mas é como diz jogador de futebol: treino é treino, jogo é jogo. O tiroteio foi intenso, eu vacilei, tentei me aproximar e o cara me acertou no ombro. Só me lembro de sentir o braço formigando e o sangue ensopando a camisa. Na hora eu não sabia se tinham acertado o ombro, as costas, ou o peito. Eu só pensava na doutora perguntando se eu tinha medo de morrer. Mas o tiro pegou no braço e eu fiquei bem. Todo dia eu olho a cicatriz, para eu ficar esperto e não vacilar mais”.

Soldado real

Cleverson descobriu da maneira mais dura à diferença entre o sonho e a realidade. Bem distante do super herói que ele queria ser, hoje vive assombrado pelas suas lembranças. Fantasmas que ele teve que aprender a conviver. “Já tive que matar para não morrer e também já vi de tudo. Menina de classe alta se prostituindo por um pacote de farinha, moleque de catorze anos com fuzil na mão, gente morta com tiro de dose na cabeça. Mas não deixo mais me abalar. Ou você domina seus fantasmas ou eles dominam você”.
Orgulho mesmo, só guarda um. O de nunca ter se corrompido. “Já tentaram me comprar de tudo quanto é jeito. Desde suborno no trânsito até grana alta para colaborar com traficante. Nunca aceitei. Já convivo com frustrações demais. Entrei na Policia porque queria prender bandido e não para me juntar a eles. Acho que isso foi o mais perto que cheguei de ser o super-herói que eu sonhava nos tempos de moleque. Pelo menos com esse fantasma eu não preciso conviver”.


*A policia militar de São Paulo conta hoje com um efetivo de aproximadamente 130 mil homens. É a maior força policial do pais e, em efetivo, é a terceira maior força militar da América Latina. O salário médio é de R$ 1500,00 por mês.

20 de jul. de 2007

Vozes


Vozes murmurando, suplicando, rindo, chorando, gritando.
Vozes. Ela as ouvia por toda a casa, em todos os cômodos. Todos os dias, há todas as horas.
Vozes que incomodavam, assustavam e, por vezes, lhe perturbavam a vida, mas que depois de certo tempo já faziam parte do seu cotidiano. Ela já não se incomodava, apenas as ouvia.
Algumas vezes tentava responder, conversar, mas não tinha sucesso. As vozes eram solitárias, não se davam conta de que tinham uma ouvinte, igualmente solitária.
A família lhe dizia que eram coisas da sua imaginação, que a mente estava lhe aplicando peças. Os médicos diziam que eram alucinações, provavelmente, causadas pelos fortes remédios que tomava. Bobagem. Ela tinha certeza que elas estavam lá.
Vez por outra, as vozes sumiam por um tempo. Ela achava que tinham ido embora. Mas logo, ouvia umas risadas na sala, alguns choros no quarto, gritos durante a noite. Súplicas, orações, pedidos, declarações. Ela ouvia de tudo.
E assim os anos foram passando. Suas mãos foram ficando trêmulas e enrugadas. Os cabelos embranqueceram, o andar foi perdendo a agilidade. Só o ouvido continuava funcionando bem. As vozes se mantinham fiéis, mais fiéis do que a família, que a bons anos colocaram-na nesse asilo. No inicio eles ainda vinham todos os sábados. Traziam doces, frutas e passeavam com ela pelo jardim. Depois vinham somente nos natais e aniversários. Traziam alguns presentes e rapidamente iam embora. Hoje raramente aparecem para vê-la.
Diziam que ela tinha problemas, que precisava se tratar. Não entendiam que ela apenas ouvia vozes. Vozes que até hoje ela escuta, tanto nos corredores pálidos quanto nos jardins mórbidos daquele lugar. Vozes que hoje são sua única companhia.

11 de jul. de 2007

Um bilhete para seu Gê


O dia estava movimentado nas instalações da estrada de ferro Santos - Jundiaí. Os passageiros que entravam nos trens encontravam operadores com o semblante preocupado. Uma estranha tensão pairava entre os homens que trabalhavam por toda a extensão da linha.
Na oficina de manutenção que funcionava na Vila de Paranapiacaba o clima era pesado. No lugar dos costumeiros risos e das constantes brincadeiras, um silêncio perturbador, só quebrado pelo som do martelo batendo contra as peças, tomava conta do ambiente. No lugar das conversas, apenas cochichos em pequenos grupos isolados, que trocavam olhares desconfiados entre si.
Já passava do meio dia, quando a sirene avisou a chegada do horário do almoço. Lentos, com a cabeça baixa e com os rostos angustiados, os homens se dirigiam ao refeitório do pátio de operações da companhia. Apesar de fazer quase cinqüenta anos que a ferrovia tinha deixado de pertencer a São Paulo Railway Company, algumas placas nas paredes ainda lembravam a presença inglesa.

LEMBRANÇAS

Sentado em uma das últimas mesas, quase isolado, em companhia de apenas alguns poucos amigos, estava Gilson Magno, o seu Gê. Senhor conhecido entre os ferroviários pelas piadas e pelo bom humor. Mas aquele homem que remexia a marmita, com os olhos caídos e que, com as mãos coçava o bigode amarelado do cigarro, não era nem a sombra do ferroviário que alegrava as conversas na padaria na parte alta da Vila, onde os funcionários se encontravam no fim do dia.
Sem dizer uma palavra, seu Gê levou a primeira garfada de comida à boca. Enquanto mastigava com dificuldade, lembrou-se de quando chegou para trabalhar na estrada de ferro. Operava o locobreque, uma locomotiva que servia para puxar os trens que subiam a serra.
Dirigir aquelas máquinas não era fácil. O maquinista viajava em pé e a cabine era aberta. Lembrou-se do frio e da chuva fina, que por tantas vezes enfrentou, durante o sobe e desce da serra. Havia poucos maquinistas que operavam o locobreque, por isso, os turnos eram extremamente cansativos, o que gerava vários acidentes.
Seu Gê trabalhou por quase dez anos à frente do locobreque, mas acabou contraindo uma séria pneumonia, que quase lhe custou a vida. Depois disso, foi transferindo para trabalhar na sinalização e na reserva de escala dos maquinistas. Mais tarde, foi a para manutenção.
BILHETE AZUL

Mais uma garfada. A comida parecia lhe rasgar a garganta. Retirou do bolso um bilhete azul, timbrado com as marcas da nova dona da ferrovia, a MRS Logística. Já lera aquele bilhete mais de vinte vezes à procura de um erro, de um engano. Lia e olhava para o teto, como se procurasse respostas.
Estava com os olhos vermelhos de quem lutava para controlar as lágrimas e passava as mãos suadas nos cabelos já embranquecidos. Olhou em volta e viu seus colegas em silêncio. Alguns tão tristes como ele, outros preocupados como todos.
Tentou mais uma garfada, mas dessa vez até mastigar estava difícil. Sentiu a garganta se fechar e a comida se misturar com um choro entalado. Olhou para a marmita, a segurou pela borda e a arremessou longe. A vasilha bateu violentamente em uma das colunas, espalhando a comida pelo chão do refeitório.
O som dos talheres em contato com os pratos silenciou. Todos olhavam para seu Gê, entendiam sua dor. Ele continuou em silêncio. Apenas se levantou, já sem conter as lágrimas e recebeu abraços de alguns companheiros. Saiu limpando as lágrimas com o uniforme da ferrovia. Aquele era seu último almoço no refeitório da estrada de ferro.
O bilhete que guardava no bolso avisava: seu nome constaria na lista de demissões promovidas pela nova gestora da ferrovia. Dali para frente começavam novos tempos na estrada.


Trecho do livro-reportagem Em companhia de uma Inglesa – vidas que a ferrovia construiu, escrito por mim como trabalho de conclusão do curso de jornalismo. O livro conta a história da estrada de ferro São Paulo Railway, primeira ferrovia do estado de São Paulo construída em 1867, por um consórcio inglês e que ligou São Paulo a Santos, transportando a riqueza do café e transformando a vida de várias pessoas

6 de jun. de 2007

Anônimo



Me lembro bem de quando eu cheguei aqui. Eu nunca havia saído da minha cidadezinha, Jucati, lá no Pernambuco. Você conhece Jucati? É uma cidade muito bonita, com sol forte, céu azul. Lá as pessoas se conhecem, se cumprimentam, se ajudam. Lá tinha de tudo, só não tinha emprego. Então resolvi vir para São Paulo.
Fiquei um ano juntando dinheiro para conseguir comprar a passagem. Trabalhei como pedreiro e suei muito na roça. Quando consegui a quantia certa, comprei uma passagem e vim-me embora.
Vim só com a roupa do corpo. E eu não tinha medo não. Estava animado. Tinha disposição para trabalhar. Poderia ser de pedreiro ou limpador de rua, mas eu queria mesmo era ser feirante. Trabalhar com frutas e legumes.
No ônibus eu ficava imaginando como deveria ser a cidade. Na verdade eu só conseguia imaginar Jacuti, só que maior, com mais casas, mais gente. Todos com empregos, todos felizes e contentes.


CIDADE CINZA

Quando cheguei aqui, vi que era bem diferente de Jacuti. Aqui o céu é cinza, o ar é pesado, o sol é ardido, a garoa é gelada. As pessoas parecem fantasmas, andando para um lado e para o outro. Não se falam, só se esbarram, se pisam.
Quando eu cheguei aqui, tava todo mundo com medo, havia muita policia na rua. Alguém me disse que estavam lutando pelas diretas. Até hoje não sei bem o que aconteceu. Mas sei que quem falava alguma coisa, acabava apanhando da policia. Comigo ninguém fazia nada. Ninguém nem percebeu que eu havia chegado.
Eu andava pelas ruas, mas parecia que não estava ali. Me sentia uma alma penada, igual as das histórias que meu Vô Bento contava. Saudade do Vô Bento. Quando vim embora ele estava bem doente, de certo já morreu. Eu gostava muito dele apesar do cachimbo fedido que ele fumava.
Aqui eu não tinha vô Bento, não tinha tio, tia, pai, mãe, cachorro ou periquito. Só tinha eu mesmo. Então, na primeira noite em São Paulo eu dormi em um banco de praça. Pensei que fosse só por aquela noite. Mas ai, passou mais uma, e mais outra. Quando eu vi já se passava um mês.

UMA SOMBRA

No começo eu não queria pedir, mas a fome começou a apertar e roubar eu não tinha coragem. Então comecei a pedir ajuda. E foi ai que eu descobri que tem algo pior que a fome. Eu não sei bem dizer que sentimento que é, mas é algo que sinto quando as pessoas me olham como se eu fosse um estorvo, um bicho ou sei lá o que. Sabe, a pessoa põe a mão no bolso, e despeja umas moedas na minha mão e sai apressado, quase correndo. Nem dá tempo de dizer um obrigado. Eles não olham nos olhos, parecem que não querem me ver.
Eu não tinha lugar para tomar banho, nem para dormir. Não tinha comida. Sujo e com fome, como é que eu ia arrumar emprego? Sem emprego, não tinha dinheiro, e sem dinheiro não tinha como eu ir embora. Mas também não dava para eu ficar. Então depois de dois anos pensei em cometer suicídio. Mas eu não tinha coragem não.
Nessa época eu já não tinha nome, endereço, família ou dignidade. A cidade me tirou tudo. Então se passou mais uma noite, e mais outra, e quando percebi já havia passado 10 anos.
Lembro que uma vez eu passei em frente a uma loja e tinha um espelho, e quando eu me olhei, vi que já não era mais eu. Era um cara barbudo, com a pele escura, os olhos fundos e com marcas roxas em volta. O cabelo estava duro e amarelado. Fiquei um tempo olhando e pensando quem era aquele ali na minha frente. Nesse dia eu chorei o resto da tarde toda.
E se passou mais uma noite, e mais uma e mais outra e já nem sei mais quanto tempo estou aqui. Dormindo em praças e viadutos.

LEMBRANÇAS

Às vezes tenho sorte e consigo um abrigo. Passo pelos bares, restaurantes, feiras e acabo conseguindo algo para comer. De vez em quando um pessoal chega aqui na praça e serve sopa, distribui cobertores. Só não pode vacilar se não vem outro e leva embora. Às vezes passa a policia e manda a gente ir embora. Mas é só por uma noite, depois nós voltamos.
O engraçado é que faz tanto tempo que estou aqui e até hoje ninguém percebeu que eu cheguei. Eu continuo aqui, vagando pelas ruas, praças e viadutos. Não consegui ser pedreiro, nem limpador de rua e muito menos trabalhar na feira.
Já faz um tempo que eu desisti de ser gente. A cidade me venceu. Sonhar mesmo, eu só sonho com Jacuti. Fico pensando no seu céu azul, no sol forte, nas conversas, nos amigos.
Fico pensando se lá em Jacuti, alguém ainda pensa em mim. De certo devem achar que eu morri. E eles estão mais ou menos certos, porque eu não estou lá, mas também eu não existo aqui.

25 de mai. de 2007

De onde o passado veio




Uma tarde fria, típica da capital paulista, onde uma leve garoa e um vento gelado causavam arrepios nas pessoas que, de pé, aguardavam na plataforma. Todos os olhares se voltam para um infinito de trilhos que adentra a rua. Entre todos os presentes, a expectativa é grande. De repente um apito estridente quebra o silêncio e anuncia sua chegada. Uma nuvem de vapor recai sobre a plataforma e o cheiro de lenha queimada se espalha pelo ar. Quando a nuvem se dissipa, se pode admirar a antiga locomotiva. A “velha senhora” como é chamada pelos antigos maquinistas, que a conduziam pelo interior do estado até a descida da serra do mar, levando café, riquezas, lembranças e histórias.
A cena da chegada da Maria Fumaça, corriqueira até a segunda metade do século XIX, hoje já não faz mais parte do cotidiano da cidade. Mas de terça a domingo é possível revivê-la no Memorial do Imigrante, em São Paulo, onde os visitantes podem embarcar em uma antiga locomotiva de 1910 e percorrer um trecho do Brás até a Mooca. Uma viagem que, apesar de durar poucos minutos, atravessa mais de cem anos de história.
A HISTÓRIA

A máquina pertenceu a São Paulo Railway, empresa inglesa que em 1867 implantou a primeira estrada de ferro do estado de São Paulo, ligando o interior paulista ao porto do santos, de onde nosso café ganhava o mundo e gerava riquezas aos fazendeiros. Essa estrada, hoje chamada de Santos – Jundiaí, trouxe um grande impulso econômico para a cidade. Além disso, a presença inglesa deixou traços marcantes na nossa cultura.
Com o progresso e a prosperidade, pessoas das mais variadas partes do mundo vieram para o Brasil a fim de trabalhar na estrada de ferro ou nas fábricas instaladas em suas margens. Esses imigrantes desciam no porto de Santos, embarcavam na locomotiva e chegavam até o bairro da Mooca, onde na Rua Visconde de Parnaíba, localizava-se um prédio imponente, de arquitetura neoclássica – típica influência inglesa – com a fachada alaranjada e belos jardins em sua entrada. Tratava-se da Hospedaria dos Imigrantes, lugar que servia de moradia para esses imigrante nos primeiros meses no país.
UM LAR
Nesse local eles recebiam atendimento médico, faziam refeições, eram cadastrados e encaminhados para industrias ou fazendas que os contratavam. Hoje, no local funciona o Memorial do Imigrante, e nas suas salas, através de objetos e documentos guardados e preservados, é contada um pouco da história dessas pessoas.
Nas salas, estão expostos objetos antigos e curiosos como à antiga cadeira de dentista, ou a máquina fotográfica, peças de vestuário e muitas fotos. Peças que mostram como era a rotina das pessoas que chegavam ao país. Além disso é possível também fazer consultas sobre dados de imigração antiga.
Cada sala é uma viagem no tempo. Nas fotos de imigrantes expostas, o que chama atenção são as expressões registradas. Um misto de esperança e sofrimento, de quem se aventurou por meses em alto mar, em busca de algo melhor. Ainda pode-se ver uma exposição de carros antigos e uma réplica de casa de fazenda, destinadas aos trabalhadores estrangeiros.
O TREM
Mas o grande atrativo do lugar é sem duvida o passeio de trem. A antiga locomotiva possui um vagão correio, vagão de segunda classe e o vagão varanda, lugar destinado aos mais nobres, bem espaçoso e com cadeiras amplas e confortáveis.
Os funcionários atuais usam roupas idênticas às usadas pelos funcionários da inglesa, apelido pelo qual a empresa era conhecida. Os visitantes também podem se vestir com roupas da época, o que faz com que a imaginação nos remeta ainda mais aquele tempo.
Dentro do vagão da segunda classe, as marcas SPR gravadas por toda a parte mostram a presença inglesa. Tudo é bem rústico. As cadeiras de madeira são duras, o teto todo talhado a mão, o assoalho claro, com algumas frestas por onde é possível ver os trilhos correndo.
Os trens são mantidos pela Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, Abepef, uma Ong sem fins lucrativos que trabalha a 12 anos restaurando as máquinas e promovendo passeios culturais e históricos. Todos os funcionários são voluntários, e trabalham de graça, mas engana-se quem acha que alguém reclama. “O prazer de vir aqui é insubstituível. Fazemos por amor, para manter a história de São Paulo viva” afirma Clóvis Castilho, ex-ferroviário que revive seus bons tempos de maquinista operando a velha senhora, “esse é um patrimônio que não tem preço. É daqui que o passado veio”.
Outras informações no site www.memorialdoimigrante.sp.gov.br

15 de mai. de 2007

Amigo, me vê um cafezinho

Ele odiava seu emprego. Odiava as mesinhas cinza, as divisórias, o tapete azul. Odiava tanto o bom-dia sorridente da recepcionista quanto os gritos e insultos que ele agüentava do chefe, um jovem arrogante famoso pela maneira áspera que tratava os funcionários. Quantas vezes já havia pensado em enfrentá-lo, mas ai lembrava-se do salário, das responsabilidades, então se calava e abaixava a cabeça.
Ele odiava aquele mundinho ao qual estava preso e que a cada dia o fazia se sentir mais derrotado. Se pelo menos tivesse seguido o seu sonho de ser músico, mas acabou sucumbindo às tentações do vale refeição e do convenio médico. Até seus benefícios ele odiava.
Só havia uma coisa que ele realmente gostava no emprego. A máquina de café expresso. Tomava uns quinze cafés por dia. O tempo que passava esperando a máquina preparar o café e depois degustando a bebida, eram os momentos mais felizes que tinha no trabalho. Odiava quando era interropido.
Certo dia estava finalizando alguns relatórios – ele odiava ter que fazer relatórios – quando foi chamado a sala do chefe. Ele sabia o que lhe esperava. Respirou fundo e se dirigiu até o fim do corredor. Abriu a porta de mogno escura e sentou-se na poltrona cinza acolchoada. Antes que pudesse dizer alguma coisa, uma avalanche de ofensas, de críticas e desaforos se seguiram. O motivo da bronca era alguns memorandos atrasados.
Ele ainda tentou argumentar, dizendo que aquele era um serviço de outro rapaz que havia saído de férias sem terminar o trabalho, mas foi interrompido aos gritos pelo chefe, que parecia sentir um prazer quase sexual em humilhá-lo.
Saiu da sala cabisbaixo. Resolveu fazer a única coisa que o deixava feliz. Resolveu tomar um café. Foi então que descobriu que a máquina de expresso não estava mais lá. Como medida de redução de custos, o chefe a havia retirado.
ÓDIO

Seu rosto ficou vermelho, parecia que iria explodir. Apressadamente atravessou o corredor, chegou até a sua mesa, pegou a pilha de papéis e se dirigiu para a sala do chefe.
Deu um forte chute na porta, abrindo-a de uma vez. Aproximou-se do chefe, que se encolheu assustado e o olhava atônito, e começou a rasgar as folhas, uma a uma, espalhando seus pedaços pelo tapete bege que cobria o chão da sala.
O chefe tentou falar, mas foi interrompido com um grito de cala a boca. Naquele momento ele despejou tudo que estava engasgado durante aqueles longos seis anos de frustrações.
Disse o quanto odiava aquele emprego, o quanto achava o chefe uma pessoa arrogante e despreparada e por fim pronunciou sua liberdade: “Eu me demito”.
Repetia a frase várias vezes enquanto terminava de rasgar os papéis, jogando seus pedaços para o alto como se fosse serpentina. Continuou a repeti-la, agora a cantarolando, enquanto pegava suas coisas e enquanto esperava o elevador.
Ao sair na rua, a luz do sol o iluminou e uma leve brisa balançava seu cabelo. Sentia-se mais leve, o sorriso tão raro nos últimos tempos, agora lhe atravessava o rosto.
O corpo meio curvo, estava ereto. Tal qual um guerreiro que acabara de matar um dragão, atravessou a avenida com o peito estufado. Entrou na padaria, sentou-se encostado ao balcão. Afrouxou a gravata, respirou fundo, chamou o balconista e disse. “Amigo, me vê um cafezinho”.

10 de mai. de 2007

O japonês de papel

Já passava das cinco da tarde quando ouvi alguém perguntar pelo senhor Sushiro, só então olhei para as caixas de papelão espelhadas pela loja e me dei conta que ele não havia aparecido naquele dia.
Sushiro era um japonês, já bem velho, que todos os dias, pontualmente às quatro horas, passava pelo centro comercial de Piraporinha em Diadema, onde eu trabalhava. Ia de loja em loja apanhando as caixas de papelão vazias, que lotavam seu carrinho de mão pintado de amarelo.
Diferente do perfil dos catadores de papel, seu Sushiro estava sempre bem arrumado. Trajando calça social e camisa, mantinha o cabelo sempre penteado e ajeitado com gel. Tinha a postura meio curva e o andar manco. Nunca dizia nada. Apenas parava seu carrinho de mão amarelo na porta da loja, levantava os olhos, como se pedisse permissão para entrar. Pegava as caixas, as desmontava, empilhava no seu carrinho e saia em direção à próxima loja.
Seu jeito exótico despertava, em todos nós, curiosidade sobre sua origem. Mas como sobre isso ele nunca falava, aliás ele nunca falava sobre nada, a cada dia e ao longo dos anos, vários boatos foram surgindo ao seu respeito.
Havia os que diziam que ele era um comerciante rico que enlouqueceu ao flagar sua mulher com o melhor amigo na cama. Outros diziam que ele havia cumprido vinte anos de prisão por ter matado a mulher e o amante. Alguns contavam que ele era um ex- metalúrgico que havia trabalhado trinta e poucos anos em uma fábrica, mas foi demitido faltando um ano para se aposentar, o que teria o deixado emocionalmente abalado.
As histórias eram muitas, o que fazia do seu Sushiro uma figura folclórica e popular entre os funcionários das lojas. Ele parecia não se importar, pois se alguém o questionasse sobre a veracidade de qualquer um desses boatos ele nada dizia, apenas balançava os ombros e ia embora.
O SUMIÇO

Mas naquele dia, o velho japonês realmente não havia aparecido em nenhuma loja. As caixas de papelões, que já ficavam reservadas a sua espera, se amontoavam nos estoque e corredores das lojas. Ele não havia passado nem na padaria, onde gostava de tomar seu café sem açúcar e que de tão quente, fazia com que o vapor embaçasse as lentes dos seus óculos grandes e quadrados.
Algumas semanas se passaram sem que o velho japonês aparecesse. Logo outros catadores vieram e começaram a levar as caixas que do seu Sushiro. De uma hora para outra ele desapareceu. Assim como ninguém sabia de onde ele tinha vindo, também ninguém sabia para onde teria ido. Não demorou para outros boatos surgirem.
Diziam que ele havia conhecido uma mulher, dona de uma rede de restaurantes e ido com ela para o Mato Grosso, outros contavam que ele havia ganho uma bolada no jogo do bicho e se mudado para o interior de São Paulo. Havia também quem falasse que ele havia morrido, vitima de um atropelamento. Falavam de tudo. A verdade é que ele nunca mais apareceu e até hoje há quem tenha sua versão para o sumiço do seu Sushiro. Há até quem questione se ele realmente havia existido.
*Texto também publicado no site Portal Literal do Terra ( http://portalliteral.terra.com.br/), entre os classificados do concurso "Exercicios Urbanos" de maio de 2007

9 de mai. de 2007

As laranjas de Josemar

São quase dez horas da manhã de um belo domingo iluminado por um sol majestoso. Na rua, a tradicional gritaria da igualmente tradicional feira ecoava por todos os lados. Entre tantos chamados, um chamava atenção. Uma voz rouca que esbravejava: “Olha a laranja da felicidade, mais doce que a minha vida..” . Entre as primeiras barracas, de avental branco e calça jeans, estava o homem que repetia a frase incansavelmente.
O sorriso fácil, descompromissado e radiante é sua marca registrada. Assim como as pequenas manchas pretas espalhadas pelo nariz, que ele jura serem conseqüências de uma cusparada que levou de um sapo quando ainda era uma criança e vivia no interior do Ceara.
Na verdade, as mancha são umas das poucas lembranças do tempo de infância que sobraram na memória de Josemar Aparecido da Conceição, hoje um senhor de barba branca e rala, de pele morena “escurecida pelo sol e pela poeira”, como ele gosta de descrever. A fome, as dificuldades e as surras que tomava do pai, prefere não falar, diz que as deixou em Acarapé, pequena cidade onde viveu até os dez anos de idade, quando se escondeu na carga do caminhão do tio caminhoneiro e veio para São Paulo, tentar uma vida melhor.
AVENTURA

Desde que chegou em São Paulo, há 45 anos atrás, nunca mais viu o pai, nem os dois irmãos. Sabe que um mora em Goiás e só. A mãe morreu quando ainda era um bebe.
Sem saber o que fazer com o sobrinho, o tio o levou para Sertãozinho, em uma das fazendas que prestava serviços. Lá Josemar conseguiu seu primeiro emprego na plantação de laranja. Aprendeu o valor da terra e o do suor do trabalho. Lá também conheceu Esmeralda, sua esposa. Uma mulher doce como as laranjas que Josemar hoje vende em sua barraca, nas feiras da vida.
Dizem que quando moça, dona Esmeralda arrancava suspiros até do filho do patrão, o que desanimava Josemar a tentar alguma coisa. Mas em uma tarde, voltando da plantação, em uma carroça, topou com a moça que vinha andando pelo estradão de terra batido. Ofereceu uma carona e naquele dia os olhos de Esmeralda recaíram no dele e ali nascia uma família que seria completada por quatro filhos e três netos.
Casaram-se, ele com 28 anos, ela com 20. Moravam em uma casa, cedida pelo dono da fazenda. Esmeralda logo se acostumou com a mão áspera e calejada que lhe acaricia o rosto todas as manhãs antes de sair para o trabalho, que ia até o anoitecer. Ela cuidava da casa, mas também bordava, costurava e lavava para fora.
O AMOR

Juntos compraram um pedaço de terra e começaram a produzir. Hoje possuem uma das barracas mais famosas das feiras de domingo. Famosa tanto pelo sabor doce de suas laranjas, como também pelo humor de seu Josemar. Entre piadas, “causos” e ensinamentos, provoca o sorriso de qualquer um disposto há esquecer a pressa do dia-a-dia e perder algum tempo em conversas animadas, que por si só, explicam a frase inscrita em uma placa de madeira, pendurada no alto da barraca: “Vende-se laranjas e doa-se amor” .

Dialogo com a realidade


Volto do trabalho. Os vidros fechados, som ligado, pensamentos longe. Estou ali, eu e meu mundinho particular. De repente, um cruzamento, um semáforo vermelho e sou obrigado a parar. Enquanto me aproximo da fila de automóveis, observo um menino saindo dos meios do carro. Camiseta rasgada, short sujos, corpo franzino, ele se aproxima e para em frente ao vidro. Penso em não abrir, mas enquanto observo a expressão cansada do seu rosto ainda infantil, minhas mãos acabam tocando o botãozinho que me faz deixar meu mundinho. Olho nos seus olhos e faço uma pergunta que dá inicio a um dialogo que, até então, eu julgava pouco provável.
_ Qual o seu nome?
_ Por que “ce” que saber ?
_ Por nada.... Curiosidade?
_ Você é da policia?
_ Não!Por quê?
_ Porque se for, eu já vou dizendo que não fiz nada!
_ Mas eu não te acusei de nada!
_ Então pra que “ce” quer saber meu nome?
_ Bom, são onze horas da noite, está frio, garoando e você está de short e camiseta, vendendo balas. Acho que um menino, que não deve ter mais de sete anos, deveria estar em casa uma hora dessas.
_ Na verdade eu tenho oito!
_ Que seja, eu perguntei seu nome e ia dizer: “Fulano , porque você não vai para casa!”
_ Meu nome não é fulano!
_ Eu sei, eu sei. É só um modo de dizer. Eu perguntei seu nome para saber como te chamar!
_ Bom, se eu disser meu nome você compra uma bala?
_ Se eu comprar as bala você vai pra casa?
_Tá bom!!
_ Então me vê o pacote!
_ Obrigado!
_ De nada! Bom o farol abriu, tenho que ir, Tchau !!
_Tchau !!
Engato a primeira, acelero e vou saindo. Antes de fechar o vidro ainda ouço uma voz gritando :
_ Hei, meu nome é Leaaandrooo!!

Odisséia Cotidiana

Olhares perdidos, semblantes cansados.

Tumulto, aperto, desconforto, indiferença.

Filas intermináveis, empurrões, confusões.

As mãos firmem seguram no apoio, equilíbrio é fundamental. Conversas paralelas formam um mutuado de palavras que não fazem sentido.

Alguns se retiram dali através da musica, outros conseguem se deixar lavar pela leitura, grande parte se deixa vencer pelo sono e adormecem, acomodados em bancos duros, balançando no ritmo intenso da viagem.

Não há nomes, são raros os sorrisos.

Parecem fantasmas, mas são pessoas. Pessoas tratadas como gado, mas ainda pessoas. Algumas vendendo, outras pedindo, poucos escutando. Todos tentando sobreviver.

O relógio dita a velocidade do passo, a pressa é companheira inseparável. Pressa para ir, pressa para voltar. Depois do sufrágio, da correria, do aperto, dos empurrões, do calor sufocante, dos cochilos, enfim o objetivo é alcançado. Chegamos em casa.