O dia estava movimentado nas instalações da estrada de ferro Santos - Jundiaí. Os passageiros que entravam nos trens encontravam operadores com o semblante preocupado. Uma estranha tensão pairava entre os homens que trabalhavam por toda a extensão da linha.
Na oficina de manutenção que funcionava na Vila de Paranapiacaba o clima era pesado. No lugar dos costumeiros risos e das constantes brincadeiras, um silêncio perturbador, só quebrado pelo som do martelo batendo contra as peças, tomava conta do ambiente. No lugar das conversas, apenas cochichos em pequenos grupos isolados, que trocavam olhares desconfiados entre si.
Já passava do meio dia, quando a sirene avisou a chegada do horário do almoço. Lentos, com a cabeça baixa e com os rostos angustiados, os homens se dirigiam ao refeitório do pátio de operações da companhia. Apesar de fazer quase cinqüenta anos que a ferrovia tinha deixado de pertencer a São Paulo Railway Company, algumas placas nas paredes ainda lembravam a presença inglesa.
LEMBRANÇAS
Sentado em uma das últimas mesas, quase isolado, em companhia de apenas alguns poucos amigos, estava Gilson Magno, o seu Gê. Senhor conhecido entre os ferroviários pelas piadas e pelo bom humor. Mas aquele homem que remexia a marmita, com os olhos caídos e que, com as mãos coçava o bigode amarelado do cigarro, não era nem a sombra do ferroviário que alegrava as conversas na padaria na parte alta da Vila, onde os funcionários se encontravam no fim do dia.
Sem dizer uma palavra, seu Gê levou a primeira garfada de comida à boca. Enquanto mastigava com dificuldade, lembrou-se de quando chegou para trabalhar na estrada de ferro. Operava o locobreque, uma locomotiva que servia para puxar os trens que subiam a serra.
Dirigir aquelas máquinas não era fácil. O maquinista viajava em pé e a cabine era aberta. Lembrou-se do frio e da chuva fina, que por tantas vezes enfrentou, durante o sobe e desce da serra. Havia poucos maquinistas que operavam o locobreque, por isso, os turnos eram extremamente cansativos, o que gerava vários acidentes.
Seu Gê trabalhou por quase dez anos à frente do locobreque, mas acabou contraindo uma séria pneumonia, que quase lhe custou a vida. Depois disso, foi transferindo para trabalhar na sinalização e na reserva de escala dos maquinistas. Mais tarde, foi a para manutenção.
BILHETE AZUL
Mais uma garfada. A comida parecia lhe rasgar a garganta. Retirou do bolso um bilhete azul, timbrado com as marcas da nova dona da ferrovia, a MRS Logística. Já lera aquele bilhete mais de vinte vezes à procura de um erro, de um engano. Lia e olhava para o teto, como se procurasse respostas.
Estava com os olhos vermelhos de quem lutava para controlar as lágrimas e passava as mãos suadas nos cabelos já embranquecidos. Olhou em volta e viu seus colegas em silêncio. Alguns tão tristes como ele, outros preocupados como todos.
Tentou mais uma garfada, mas dessa vez até mastigar estava difícil. Sentiu a garganta se fechar e a comida se misturar com um choro entalado. Olhou para a marmita, a segurou pela borda e a arremessou longe. A vasilha bateu violentamente em uma das colunas, espalhando a comida pelo chão do refeitório.
O som dos talheres em contato com os pratos silenciou. Todos olhavam para seu Gê, entendiam sua dor. Ele continuou em silêncio. Apenas se levantou, já sem conter as lágrimas e recebeu abraços de alguns companheiros. Saiu limpando as lágrimas com o uniforme da ferrovia. Aquele era seu último almoço no refeitório da estrada de ferro.
O bilhete que guardava no bolso avisava: seu nome constaria na lista de demissões promovidas pela nova gestora da ferrovia. Dali para frente começavam novos tempos na estrada.
Trecho do livro-reportagem Em companhia de uma Inglesa – vidas que a ferrovia construiu, escrito por mim como trabalho de conclusão do curso de jornalismo. O livro conta a história da estrada de ferro São Paulo Railway, primeira ferrovia do estado de São Paulo construída em 1867, por um consórcio inglês e que ligou São Paulo a Santos, transportando a riqueza do café e transformando a vida de várias pessoas
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