_Você tem medo de morrer?
_Tenho sim senhora
_ E como é que você vai ser policial?
_ Eu não quero morrer senhora, eu quero ser policial.
Fazia mais de 14 anos que aquele diálogo havia acontecido, mas ainda estava vivo na lembrança de Cleverson. Era a última etapa para ele ser aprovado no concurso público da Policia Militar de São Paulo. A entrevista psicológica era a etapa mais temida entre os participantes da seleção. “A doutora entra na sua mente”, diziam alguns de seus amigos que haviam enfrentado o teste.
Cleverson foi aprovado. Quando saiu da pequena sala estava preste a realizar um sonho antigo, que vinha desde os tempos de criança, quando via o policial como uma espécie de super herói. “O cara que salvava as pessoas que estavam em apuros”, como ele gosta de lembrar. Claro que, na medida que crescia essa imagem heróica ia sumindo de sua mente, mas à vontade de seguir esta carreira continuou intacta dentro do peito.
17 de Agosto de 1993. O céu estava nublado naquela manhã e um vento gelado aumentava a sensação de frio. Era seu primeiro dia no quartel e ele precisava se esforçar para esconder o nervosismo. A bota de couro lhe apertava os dedos, o corpo parecia se esforçar para se adequar ao peso da farda cinza. Estava apreensivo. Sentia uma certa insegurança quanto à carreira que acabava de iniciar. Mas estava feliz.
Sonhos perdidos
Mais de 14 anos depois daquele dia, o nervosismo, a apreensão, a ansiedade e principalmente a felicidade davam lugar para sentimentos bem diferentes. Agora ele tinha o semblante fechado, de raros sorrisos. Ao longo dos anos, o corpo franzino adquiriu músculos bem torneados e uma barba rala lhe cobria o rosto. “Agente tem que ter cara de mau, se não malandro não respeita”, explica.
Os olhos fundos, eram reflexo das noites mal dormidas, um pouco por conta da sua nova rotina. A noite faz rondas noturnas e durante o dia faz bico como segurança de um açougue. “Se não for assim a gente passa fome”. E também devido às lembranças que atormentavam suas noites.
Bem visível no ombro esquerdo, uma grande cicatriz. Recordação do primeiro tiro que levou. “Foi logo no meu primeiro ano de policial. Já haviam me avisado que na ronda noturna o bicho pega. Mas eu gostava da adrenalina. A gente foi atender uma briga de bar dentro de uma favela. Já estávamos indo embora e ouvimos uns tiros vindo de outra rua. Era uma briga de traficantes, que disputavam o poder de uma boca de fumo.
Eu nuca havia dado um tiro, só no treinamento, mas é como diz jogador de futebol: treino é treino, jogo é jogo. O tiroteio foi intenso, eu vacilei, tentei me aproximar e o cara me acertou no ombro. Só me lembro de sentir o braço formigando e o sangue ensopando a camisa. Na hora eu não sabia se tinham acertado o ombro, as costas, ou o peito. Eu só pensava na doutora perguntando se eu tinha medo de morrer. Mas o tiro pegou no braço e eu fiquei bem. Todo dia eu olho a cicatriz, para eu ficar esperto e não vacilar mais”.
Soldado real
Cleverson descobriu da maneira mais dura à diferença entre o sonho e a realidade. Bem distante do super herói que ele queria ser, hoje vive assombrado pelas suas lembranças. Fantasmas que ele teve que aprender a conviver. “Já tive que matar para não morrer e também já vi de tudo. Menina de classe alta se prostituindo por um pacote de farinha, moleque de catorze anos com fuzil na mão, gente morta com tiro de dose na cabeça. Mas não deixo mais me abalar. Ou você domina seus fantasmas ou eles dominam você”.
Orgulho mesmo, só guarda um. O de nunca ter se corrompido. “Já tentaram me comprar de tudo quanto é jeito. Desde suborno no trânsito até grana alta para colaborar com traficante. Nunca aceitei. Já convivo com frustrações demais. Entrei na Policia porque queria prender bandido e não para me juntar a eles. Acho que isso foi o mais perto que cheguei de ser o super-herói que eu sonhava nos tempos de moleque. Pelo menos com esse fantasma eu não preciso conviver”.
*A policia militar de São Paulo conta hoje com um efetivo de aproximadamente 130 mil homens. É a maior força policial do pais e, em efetivo, é a terceira maior força militar da América Latina. O salário médio é de R$ 1500,00 por mês.
Um comentário:
Finalmente foi publicado mais um texto e, diga-se de passagem, um belo texto. Parabéns!
abs.
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