6 de jun. de 2007

Anônimo



Me lembro bem de quando eu cheguei aqui. Eu nunca havia saído da minha cidadezinha, Jucati, lá no Pernambuco. Você conhece Jucati? É uma cidade muito bonita, com sol forte, céu azul. Lá as pessoas se conhecem, se cumprimentam, se ajudam. Lá tinha de tudo, só não tinha emprego. Então resolvi vir para São Paulo.
Fiquei um ano juntando dinheiro para conseguir comprar a passagem. Trabalhei como pedreiro e suei muito na roça. Quando consegui a quantia certa, comprei uma passagem e vim-me embora.
Vim só com a roupa do corpo. E eu não tinha medo não. Estava animado. Tinha disposição para trabalhar. Poderia ser de pedreiro ou limpador de rua, mas eu queria mesmo era ser feirante. Trabalhar com frutas e legumes.
No ônibus eu ficava imaginando como deveria ser a cidade. Na verdade eu só conseguia imaginar Jacuti, só que maior, com mais casas, mais gente. Todos com empregos, todos felizes e contentes.


CIDADE CINZA

Quando cheguei aqui, vi que era bem diferente de Jacuti. Aqui o céu é cinza, o ar é pesado, o sol é ardido, a garoa é gelada. As pessoas parecem fantasmas, andando para um lado e para o outro. Não se falam, só se esbarram, se pisam.
Quando eu cheguei aqui, tava todo mundo com medo, havia muita policia na rua. Alguém me disse que estavam lutando pelas diretas. Até hoje não sei bem o que aconteceu. Mas sei que quem falava alguma coisa, acabava apanhando da policia. Comigo ninguém fazia nada. Ninguém nem percebeu que eu havia chegado.
Eu andava pelas ruas, mas parecia que não estava ali. Me sentia uma alma penada, igual as das histórias que meu Vô Bento contava. Saudade do Vô Bento. Quando vim embora ele estava bem doente, de certo já morreu. Eu gostava muito dele apesar do cachimbo fedido que ele fumava.
Aqui eu não tinha vô Bento, não tinha tio, tia, pai, mãe, cachorro ou periquito. Só tinha eu mesmo. Então, na primeira noite em São Paulo eu dormi em um banco de praça. Pensei que fosse só por aquela noite. Mas ai, passou mais uma, e mais outra. Quando eu vi já se passava um mês.

UMA SOMBRA

No começo eu não queria pedir, mas a fome começou a apertar e roubar eu não tinha coragem. Então comecei a pedir ajuda. E foi ai que eu descobri que tem algo pior que a fome. Eu não sei bem dizer que sentimento que é, mas é algo que sinto quando as pessoas me olham como se eu fosse um estorvo, um bicho ou sei lá o que. Sabe, a pessoa põe a mão no bolso, e despeja umas moedas na minha mão e sai apressado, quase correndo. Nem dá tempo de dizer um obrigado. Eles não olham nos olhos, parecem que não querem me ver.
Eu não tinha lugar para tomar banho, nem para dormir. Não tinha comida. Sujo e com fome, como é que eu ia arrumar emprego? Sem emprego, não tinha dinheiro, e sem dinheiro não tinha como eu ir embora. Mas também não dava para eu ficar. Então depois de dois anos pensei em cometer suicídio. Mas eu não tinha coragem não.
Nessa época eu já não tinha nome, endereço, família ou dignidade. A cidade me tirou tudo. Então se passou mais uma noite, e mais outra, e quando percebi já havia passado 10 anos.
Lembro que uma vez eu passei em frente a uma loja e tinha um espelho, e quando eu me olhei, vi que já não era mais eu. Era um cara barbudo, com a pele escura, os olhos fundos e com marcas roxas em volta. O cabelo estava duro e amarelado. Fiquei um tempo olhando e pensando quem era aquele ali na minha frente. Nesse dia eu chorei o resto da tarde toda.
E se passou mais uma noite, e mais uma e mais outra e já nem sei mais quanto tempo estou aqui. Dormindo em praças e viadutos.

LEMBRANÇAS

Às vezes tenho sorte e consigo um abrigo. Passo pelos bares, restaurantes, feiras e acabo conseguindo algo para comer. De vez em quando um pessoal chega aqui na praça e serve sopa, distribui cobertores. Só não pode vacilar se não vem outro e leva embora. Às vezes passa a policia e manda a gente ir embora. Mas é só por uma noite, depois nós voltamos.
O engraçado é que faz tanto tempo que estou aqui e até hoje ninguém percebeu que eu cheguei. Eu continuo aqui, vagando pelas ruas, praças e viadutos. Não consegui ser pedreiro, nem limpador de rua e muito menos trabalhar na feira.
Já faz um tempo que eu desisti de ser gente. A cidade me venceu. Sonhar mesmo, eu só sonho com Jacuti. Fico pensando no seu céu azul, no sol forte, nas conversas, nos amigos.
Fico pensando se lá em Jacuti, alguém ainda pensa em mim. De certo devem achar que eu morri. E eles estão mais ou menos certos, porque eu não estou lá, mas também eu não existo aqui.